O PROFESSOR e jurista Ives Gandra da Silva Martins, que completa 90 anos nesta quarta, dia 12, tem uma longa trajetória marcada por contribuições ao direito
O professor e jurista Ives Gandra da Silva Martins, que completa 90 anos nesta quarta, dia 12, tem uma longa trajetória marcada por contribuições ao direito, especialmente nas áreas tributária e constitucional. Sua carreira de mais de seis décadas no cenário jurídico brasileiro é acompanhada por um olhar crítico sobre o papel das instituições, como o Supremo Tribunal Federal (STF), e sobre os rumos do país.
Em entrevista à Tribuna da Bahia, Gandra abordou um tema que tem dominado o debate público: a crescente polarização política no Brasil. Para ele, a pacificação do debate público deve começar com a postura do presidente da República, que, segundo o jurista, deveria adotar um discurso unificador.
Na ocasião, Gandra também se manifestou sobre a atual relação entre os poderes e sobre os desafios do sistema político brasileiro, apontando o impacto de um Judiciário que, a seu ver, ultrapassa suas funções constitucionais e se envolve em questões legislativas e administrativas.
Em uma análise mais profunda sobre a crise política recente, Gandra ressaltou a importância da união entre os poderes e a necessidade de um olhar mais cauteloso sobre as condenações políticas, como as do 8 de janeiro. Para ele, decisões mais equilibradas poderiam ajudar a reduzir as tensões e promover um ambiente mais estável para o país.
Ao longo da entrevista, Ives Gandra também destacou o papel do STF na interpretação da Constituição e sua atuação além das funções tradicionalmente atribuídas ao Judiciário.
O professor também refletiu sobre a relação entre o Executivo e o Legislativo nos últimos governos, fazendo uma defesa do sistema parlamentarista. Para ele, o presidencialismo brasileiro, especialmente em momentos de governo sem uma base parlamentar sólida, cria dificuldades para a governabilidade, o que muitas vezes resulta em concessões políticas.
Confira a entrevista na íntegra:
Tribuna – O senhor tem uma visão conhecida sobre a interpretação da Constituição e a atuação do Supremo Tribunal Federal. Como avalia o atual papel do STF no Brasil?
Ives Gandra – Realmente, desde o início da década de 60 que atuo com questões no STF. Minha primeira sustentação oral perante a Suprema Corte foi em 1962 ou 1963, não me lembro bem a data. Naqueles anos, cinco dos atuais ministros ainda não tinham nascido. Advoguei perante o Pretório Excelso em regimes de exceção e de plena democracia. A característica maior do STF, à época, era ser legislador negativo. Só declarava as leis constitucionais ou não, seguindo rigorosamente a Constituição. A Suprema Corte hoje adotou uma linha diferente, atuando também como legislador positivo e, até mesmo como corretor de rumos do Executivo, legisla e administra. Segue a Suprema Corte linha doutrinária cujo nome varia de neoconstitucionalismo, consequencialismo a jurisdição constitucional. Com todo o respeito que os eminentes ministros da Suprema Corte, que são grandes juristas, merecem, entendo não ter sido tal atuação a vontade do Constituinte claramente expressa em dizer que caberia ao Legislativo zelar por sua competência normativa perante os outros Poderes (Judiciário e Executivo – artigo 49, inciso XI) e que nem nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão poderiam os ministros elaborar a lei, no máximo podendo declarar sua omissão inconstitucional e pedir ao Legislativo para fazê-la (artigo 103, §2º). Desta forma, respeitando-os como juristas, permito-me divergir da linha agora adotada, que me parece não ter sido a que os Constituintes colocaram na Lei Suprema.
“A Suprema Corte hoje adotou uma linha diferente, atuando também como legislador positivo e, até mesmo como corretor de rumos do Executivo, legisla e administra.”
Tribuna – Há um debate constante sobre ativismo judicial e separação de poderes. Como garantir que o Judiciário não extrapole suas funções?
Ives Gandra – Parece-me que a única possibilidade seria de o Legislativo, por novas leis, dispor de forma diferente ou legislar corrigindo as leis já existentes, como parece ocorrer agora no marco da internet, anulá-las por decretos legislativos. Tem, todavia, o STF não aceito a tese de decretos legislativos anulatórios, o que o torna o maior Poder da República porque pode legislar ou definir linhas para o Executivo, sem que se tenha recurso contra tal atuação.
“Tem, todavia, o STF não aceito a tese de decretos legislativos anulatórios, o que o torna o maior Poder da República”.
Tribuna – O senhor já afirmou que a Constituição deve ser interpretada com base em seus princípios fundamentais. Como essa visão se aplica a temas polêmicos, como decisões sobre aborto e casamento homoafetivo?
Ives Gandra – O que tenho dito é que os princípios gerais definidos pelos representantes do povo só podem ter sua implementação infraconstitucional realizada pelos representantes do mesmo povo como, aliás, diz expressamente a Constituição Portuguesa. Entendo ser este um princípio implícito na Constituição brasileira. Minha inteligência da Lei Suprema, entretanto, não encontra repercussão junto aos ministros da Suprema Corte porque entendem que são eles que devem legislar à luz dos princípios gerais, à falta de lei ou quando não concordam com a legislação vigente. Falo como um mero professor de província, cuja palavra serve, no máximo, para reflexões acadêmicas, enquanto as decisões dos eminentes juízes da Suprema Corte têm força de lei.
“O que tenho dito é que os princípios gerais definidos pelos representantes do povo só podem ter sua implementação infraconstitucional realizada pelos representantes do mesmo povo”.
Tribuna – Qual sua avaliação sobre o atual estado da democracia brasileira? Estamos em um caminho seguro ou há riscos institucionais?
Ives Gandra – No momento em que, uma vez examinados o Poderes Judiciários de 142 países, ficamos em 80º lugar no Rule of Law Index (Índice de Estado de Direito), publicado pelo WJP (World Justice Project), há algo para meditar. É que o Judiciário, por não representar o povo, mas apenas a lei, que não faz, se exercer funções legislativas e administrativas, passará o país a ter três poderes políticos e não dois políticos e um técnico, gerando, portanto, a meu ver, insegurança jurídica. Realço que tenho admiração por todos os ministros da Suprema Corte, como juristas, apenas permitindo-me divergir na maneira de interpretar a Constituição.
Tribuna – O Brasil tem vivido um cenário de polarização política. O que o senhor acredita que deve ser feito para pacificar o debate público?
Ives Gandra – A pacificação política deveria começar pela presidência da República, adotando um discurso de união. O Legislativo, se aprovasse a lei de anistia para a baderna de 8 de janeiro também auxiliaria, até porque não foi uma tentativa de golpe de Estado. Nunca houve na história do mundo um golpe de Estado sem armas. E todos os participantes estavam desarmados. Por fim, o próprio Poder Judiciário, que por entender ter havido falhas processuais, nas fantásticas delações premiadas de corruptores, perdoando-os todos, poderia adotar algo semelhante no exame da baderna de 8 de janeiro. Talvez assim, pacificássemos o país. Em recente palestra virtual para a Universidade de Lisboa, fui questionado pelo professor João Marchante, meu confrade na Academia Internacional de Direito e Economia, por que o STF, para pessoas que confessaram ter lesado o erário em bilhões de reais, concedeu a absolvição e para pessoas desarmadas que fizeram baderna, mas causaram, na destruição das instalações públicas, prejuízo incomensuravelmente menor, condenou a 17 anos. Não soube responder.
“O Legislativo, se aprovasse a lei de anistia para a baderna de 8 de janeiro também auxiliaria, até porque não foi uma tentativa de golpe de Estado”.
Tribuna – Como o senhor vê a relação entre o Executivo e o Legislativo nos últimos governos? Houve avanços ou retrocessos?
Ives Gandra – Como sou parlamentarista, regime adotado por 19 das 20 maiores democracias do mundo, vejo no presidencialismo, quando o Executivo não tem uma maioria própria no Congresso, dificuldade de governar, precisando ceder em emendas parlamentares e tendo parte do orçamento capturado em busca de votos. Esta captura não existe no parlamentarismo, pois saindo o 1º ministro do Parlamento, se os parlamentares que o elegeram não o apoiarem integralmente, deixaria de ser governante e, por mero voto de desconfiança, perderia o governo. Não poucas vezes, no Brasil, esta relação foi difícil.
Tribuna – O senhor defende um Estado mais enxuto e eficiente. Como equilibrar isso com a necessidade de políticas públicas para reduzir desigualdades?
Ives Gandra – Defendo um estado menos burocrático. As políticas públicas poderiam ser realizadas pela sociedade, mediante supervisão eficiente de fiscais colocados por concursos públicos do que a utilização de quadros burocráticos, muitas vezes forrados de amigos do rei, sem maior formação. À evidência, tal desburocratização não eliminaria totalmente uma atuação direta do Estado quando o atendimento fugisse à possibilidade de a sociedade atuar, mas seriam necessários rígidos concursos para seus atuantes, como ocorre na magistratura ou carreira militar.
“Defendo um estado menos burocrático. As políticas públicas poderiam ser realizadas pela sociedade, mediante supervisão eficiente de fiscais”.
Tribuna – O modelo de privatizações adotado pelo Brasil tem sido eficaz? Há setores que deveriam continuar sob controle do Estado?
Ives Gandra – Tem demonstrado melhor performance do que o Poder Público, como vimos na privatização de rodovias.
Tribuna da Bahia